“Foi algo que ninguém esperava, fomos descobrir que ele teve
 depressão depois que ele se matou. A depressão dele é aquela que tem 
alteração de humor, ele sempre teve isso. Depois que se matou que fomos 
entender o que era. Meu pai nunca falou sobre isso [depressão]. No dia 
achamos que tinham matado ele, não sabíamos que tinha sido suicídio. Até
 porque só falaram para a gente que ele tinha se matado perto do 
velório. Foi difícil porque ele não nos contava nada. Ele era bem 
fechado, era o jeito dele”, diz a filha.
A jovem, com 16 anos na época, conta que a Polícia Militar tinha 
ciência da necessidade de acompanhamento psicológico do seu pai. “A 
polícia também nunca tirou ele da rua, mesmo sabendo das situações. A 
polícia sabia, tanto que ele chegou a consultar um psicólogo da 
instituição, mas aí ele não quis mais ir, não gostou e não o obrigaram a
 sair da rua. Ele continuou trabalhando. Meu pai passou 20 anos na 
polícia, todo esse tempo na rua.”
Em todas as regiões do país, que conta com cerca de 425 mil policiais
 militares, são altas as taxas de suicídio e de transtornos mentais. Em 
São Paulo, por exemplo, estado com o maior efetivo policial do país 
(93.799 agentes),120 policiais militares cometeram suicídio entre 2012 e
 2017.
São
 números explosivos, resultado de décadas de omissão, como explica 
Adilson Paes de Souza, hoje coronel reformado da Polícia Militar de São 
Paulo. A primeira vez que viveu de perto um suicídio na instituição, 
lembra, foi nos anos 1980. Um de seus colegas na PM apareceu de surpresa
 no serviço, visivelmente alcoolizado. Não explicou o motivo da visita, 
mas Paes de Souza conta que ele fez questão de se despedir de um por um,
 antes de ir embora, de volta para o bar. Uma hora mais tarde, ele e 
seus colegas de farda foram chamados pelo superior para atender a 
ocorrência de um suicídio. Aquele PM, que alguns conheciam desde os 
tempos de academia, havia se matado.
Pesquisador de segurança pública, Paes de Souza é doutorando da 
Universidade de São Paulo (USP), e seu tema principal é a inadequação da
 formação policial para lidar com a pressão da violência cotidiana. O 
treinamento exigente – 
quando não abusivo
 – desde a entrada na corporação prolonga-se em um cotidiano de rigidez 
hierárquica e intimidação, agravando o estresse, o medo e a angústia 
inerentes à profissão. Quase sempre vividos em silenciosa solidão.
“Há muitos casos que não são notificados e muitos não buscam o 
tratamento psiquiátrico porque vão sofrer chacota no ambiente de 
trabalho. Serão chamados de covardes e fracos; os comandantes podem crer
 que eles estão enrolando para matar serviço, por exemplo. É um ambiente
 bem machista e de virilidade, em que não podemos assumir fraquezas. Eu 
fui treinado assim, com os trotes na academia, os trotes das unidades em
 que passei. Você é humilhado e tem que aguentar porque o bom militar 
aguenta, o guerreiro aguenta toda e qualquer violência e acha isso 
normal. Nos fazem achar que fomos feitos para isso, mas ninguém foi 
feito para isso. Quando a PM não assume que seus policiais têm 
problemas, a instituição está fechando uma panela de pressão vazia, sem 
água, que vai explodir um dia”, adverte Paes de Souza, que ainda carrega
 as cicatrizes da violência sofrida na profissão. “Bom, eu faço 
terapia”, diz.
Violência policial e sofrimento individual
O problema ocorre em todo o país, especialmente nas regiões em que a 
polícia é mais violenta, como o Rio de Janeiro. Um grupo de psicólogos 
da PM com pesquisadores do Grupo de Estudo e Pesquisa em Suicídio e 
Prevenção (GEPeSP), da Universidade Estadual do Rio de Janeiro (Uerj), 
investigou a questão através de uma pesquisa realizada entre 2010 e 2012
 entre policiais militares. Entre as conclusões, um dado impressionante:
 no Rio, os PMs têm quatro vezes mais chances de cometer suicídio em 
comparação à população civil.
Os resultados do estudo foram publicados em 2016 no livro 
Por que policiais se matam?,
 coordenado pela pós-doutora em sociologia pela Uerj Dayse Miranda. 
Entre os problemas apontados, estão a dificuldade de pedir ajuda e a 
forma como são tratados na corporação quando adoecem.
Entrevistado pelos pesquisadores, um praça da PM disse que passou a 
ser tratado de forma pejorativa pelos colegas e oficiais após a licença 
médica e seu retorno ao posto. “Fiquei 15 dias em casa; quando eu voltei
 pra trabalhar, eu estava trabalhando já com arma de fogo, normalmente. 
Não entrei nem em Sina [Serviço Interno não Armado]. Quando eu voltei, 
eu fiquei seis dias detido no batalhão, preso. É. Meu tratamento foi 
esse. Eu fiquei dois dias hospitalizado e 15 dias em casa. No 16° dia, 
eu voltei à companhia. Me entregaram à tropa e fui punido”, disse.
Os dados apresentados pelo estudo de Dayse e sua equipe revelam que 
58 policiais militares tiraram a própria vida e 36 tentaram suicídio 
entre 1995 e 2009 no Rio de Janeiro. “Embora esses números sejam altos, o
 trabalho de campo revelou que essas cifras estão subestimadas. Muitos 
dos casos de suicídios consumados e tentativas de suicídio não são 
informados ao setor responsável por inúmeras razões. Entre elas, estão 
as questões socioculturais – o tabu em torno do fenômeno; a proteção ao 
familiar da vítima (a preservação do direito ao seguro de vida) e a 
existência de preconceito ao policial militar diagnosticado com 
problemas emocionais e psiquiátricos”, afirma o relatório da pesquisa.
De acordo com dados obtidos via Lei de Acesso à Informação na 
Secretaria de Segurança Pública do Estado do Rio de Janeiro, entre 
janeiro de 2014 e junho de 2018 três PMs foram diagnosticados, por dia, 
com transtornos mentais. Entre janeiro e agosto de 2018, 2.500 policiais
 militares foram afastados por transtornos mentais, mais que o dobro dos
 afastados em todo o ano de 2014 (836).
Para os autores do estudo, os profissionais da saúde da PM devem 
estar atentos para sinais de deterioração da saúde mental dos agentes, 
“no atendimento ao policial militar, principalmente aquele em 
atividade-fim, e em constante atuação de enfrentamento junto à 
criminalidade, o profissional de saúde deverá estar atento a 
comportamentos que demonstrem o afastamento das condutas de segurança 
requeridas para a prática da ação policial militar”, e complementa: 
“deve-se afastá-lo de sua arma de fogo ou outro meio que tenha à 
disposição e conduzi-lo ao psicólogo. É interessante entrar em contato 
com familiares ou amigos próximos na tentativa de fortalecer a rede de 
apoio”.
Números explosivos
Ao longo de dois meses, a reportagem enviou mais de 50 solicitações 
de acesso à informação para os 26 estados e Distrito Federal, 
questionando as secretarias de Segurança Pública sobre o número de 
policiais que cometeram suicídio e a quantidade de PMs afastados do 
serviço por transtorno mental. Onze estados e o DF informaram ter 
registros de suicídios, mas apenas dois enviaram os dados referentes ao 
período de janeiro de 2008 e julho de 2018, como solicitado pela 
reportagem: Pernambuco e Rio Grande do Sul.
Ainda que incompletas, as informações obtidas mostram que a 
quantidade de policiais militares afastados nos estados que responderam 
às solicitações é alta. Há relatos de afastamentos e suicídios em todos 
os 26 estados e no Distrito Federal. No Espírito Santo, por exemplo, 
aumentou o número de tentativas de suicídio entre PMs após a greve que 
paralisou parte dos policiais no estado no início de 2017. A Associação 
de Cabos e Soldados da Polícia Militar e Bombeiro Militar do Espírito 
Santo (ACS/ES) registrou, nos meses seguintes à greve, pelo menos cinco 
suicídios. Além disso, ao menos 13 policiais da 5ª Companhia do 4º 
Batalhão da PM foram afastados por agravamento de transtornos psíquicos.
 Entre as causas mais comuns relatadas está a perseguição perpetrada por
 oficiais de patentes superiores nos momentos pós-greve.
Em São Paulo, entre 2006 e 2016, 182 policiais militares cometeram 
suicídio: uma morte a cada 20 dias. A partir de 2012, a situação piorou.
 Entre aquele ano e 2017, 120 policiais militares tiraram a própria 
vida, um a cada 15 dias. Dados do relatório da Ouvidoria das Polícias do
 estado, publicados pela 
Ponte Jornalismo,
 mostram que houve 71 casos de suicídio em entre 2017 e 2018. Mais 
grave: houve crescimento de 73% nas ocorrências, com 20 casos ao longo 
de 2017 e 51 registros em 2018.
No Rio Grande do Sul, 50 PMs cometeram suicídio entre 2008 e 2018, 
período em que 10 se mataram em Pernambuco. No Ceará, entre 2011 e 2018,
 foram 18 PMs mortos por suicídio; enquanto no Rio Grande do Norte, 
entre 2010 e 2018, foram oito os suicídios – mesmo número dos ocorridos 
entre 2015 e 2018 em Alagoas.
Já no Distrito Federal, foram 11 suicídios entre 2016 e 2018, mesmo 
período em que 21 PMs se mataram na Bahia, de acordo com a Associação de
 Policiais e Bombeiros e de seus Familiares do Estado da Bahia 
(Aspra-BA). A PM baiana não confirma nem disponibiliza outros dados 
referentes aos suicídios cometidos no período.
Também forneceram dados sobre suicídios de PMs Maranhão – cinco 
mortes entre 2014 e 2018 –, Mato Grosso do Sul – 12 suicídios – e 
Paraná, 26.
Suicídio de PMs por estado
 (Agência Pública/Reprodução)
 
PMs afastados por transtornos mentais por estado
Os demais estados alegaram falta de informações precisas sobre 
afastamentos e suicídios ocorridos na última década, uma dificuldade que
 o pesquisador Adilson Paes de Souza conhece de perto: “A instituição 
[Polícia Militar] não se abre. Você mal consegue dados e, sem eles, não é
 possível estudar o fenômeno ou entender como ele surgiu, como se 
manifesta e quais os caminhos para se superar esses problemas. Os poucos
 dados que se obtêm pela Lei de Acesso à Informação são, na maioria das 
vezes, incompletos”, diz.
Para Paes de Souza, a rotina de negar ou proteger dados relacionados à
 segurança pública no Brasil ganhou força durante o regime militar. “Em 
1969, no auge da repressão, houve um decreto-lei, o 667, de 1969, que 
criou os policiais à imagem e semelhança do Exército. Uma tropa 
militarizada para combater os inimigos da sociedade. E essa tropa 
militarizada era considerada a nata, a casta, os únicos que poderiam 
salvar a nação do comunismo. Os militares acreditavam e acreditam que 
são a elite, que são os únicos que sabem o que é bom para todos. E, 
portanto, eles não precisam prestar contas a ninguém. É por isso que é 
tão difícil conseguir dados”, afirma.
O problema dos dados se repete quando a pergunta é sobre a quantidade
 de PMs afastados da função devido a transtornos mentais. No estado de 
São Paulo, dados obtidos via Lei de Acesso à Informação apontam que 
4.115 policiais foram afastados para se submeterem a tratamentos 
psiquiátricos entre 2008 e 2018. Entretanto, em setembro de 2017, o 
portal de notícias VICE Brasil recebeu, também via Lei de Acesso à 
Informação, dados que apontavam que “entre 2006 e 2016, 15.787 PMs foram
 afastados temporariamente da corporação para se submeterem a 
tratamentos psiquiátricos”. Procurada pela Pública, a Polícia Militar do
 Estado de São Paulo não deu esclarecimentos sobre a discrepância 
numérica até a publicação desta reportagem.
Seis estados negaram à reportagem o acesso aos dados: Ceará, Pará, 
Goiás, Rondônia, Sergipe e Piauí. No geral, a justificativa apresentada 
pelos estados foi que as informações requeridas eram de caráter pessoal 
dos policiais e, portanto, sigilosas. Os dados requeridos pela 
reportagem não previam a identificação de nenhum servidor, apenas 
estatísticas e informações quantitativas.
Medo de morrer
A função “policial militar” está entre as mais perigosas, e o peso da
 alta mortandade profissional, somado ao temor da morte, pode ser, 
paradoxalmente, dois entre muitos fatores que influenciam a decisão do 
PM de cometer suicídio. De acordo com o Fórum Brasileiro de Segurança 
Pública, 
um policial militar ou civil foi morto por dia em 2017 no Brasil.
Em 2014, o Rio de Janeiro foi o estado em que mais pessoas morreram 
em decorrência de ações policiais, foram cerca de 3 mil mortes. 
Paradoxalmente, no mesmo ano, o estado também foi o que mais perdeu 
policiais para a violência, com 98 mortos, seguido de São Paulo, com 91.
 “No geral, dos 398 policiais militares mortos por homicídios em 2014, 
quase 25% correspondem às mortes de policiais somente no estado do Rio 
de Janeiro. Esses dados sugerem que a alta exposição de policiais 
militares à letalidade policial pode torná-los mais suscetíveis à 
vitimização letal”, explicam os autores de “Por que policiais se 
matam?”.
O temor de adquirir transtornos mentais e comportamentais foi um dos 
temas da pesquisa realizada pelo Fórum de Segurança Pública em 2015. De 
acordo com o estudo, que ouviu mais de 10 mil agentes de segurança 
pública, 53,7% dos PMs têm receio “alto” e “muito alto” de desenvolver 
transtornos mentais. Dos PMs entrevistados, 15,1% sofrem de transtornos 
mentais comportamentais (TMC), como depressão e esquizofrenia, por 
exemplo.
Há outros fatores de risco para suicídios e transtornos mentais aos 
quais PMs estão expostos. A começar pela rigidez hierárquica, que faz 
com que os agentes escondam o problema de seus superiores. De acordo com
 a pesquisa “Vitimização e percepção de risco entre profissionais do 
sistema de segurança pública”, realizada pelo Fórum Brasileiro de 
Segurança Pública em 2015, 55,4% dos policiais militares têm receio 
“alto” e “muito alto” de manifestar discordância da opinião de um 
superior. Um problema agravado pela formação a que se submetem, como 
afirmou Paes de Souza, o que faz com que esses profissionais sequer 
procurem ajuda.
“No Rio de Janeiro, muitos PMs resistem ao afastamento porque acabam 
não entendendo [a sua necessidade]. Por serem formados para servir em 
qualquer circunstância, muitos têm o sentimento do dever e chegam a 
trabalhar [durante a folga] prestando serviços de segurança. Isso é 
muito comum”, explica Dayse Miranda. Ela também alerta para os prejuízos
 concretos que sofre o PM que passa por atendimento médico. “Com o 
tratamento psiquiátrico e a licença, o PM perde a gratificação ou 
adicional por algum tipo de trabalho. Isso é puni-lo duas vezes, puni-lo
 por estar doente. A desculpa é que o estado não garante isso. O estado 
do Rio não se importa com a saúde do policial militar. Eles querem 
colocar homens na rua e não consideram a sua vida. Os PMs saem atirando a
 esmo porque estão com medo”, ressaltou.
Em Santa Catarina, a situação não é diferente. “Aqui, se você tira 
licença médica ou tira férias, o PM perde R$ 700 do salário, então o 
policial prefere trabalhar do que perder aquele valor. Eles não param. 
Meu pai trabalhava como segurança por fora. Ele trabalhava cerca de 15 
ou 16 horas. Trabalhava como segurança particular em supermercados e 
padarias, mas não podia, a PM não deixa”, conta Fernanda*.
Um estudo realizado em 2009 por Joana Helena Rodrigues da Silva, 
mestre em psicologia escolar e desenvolvimento humano pelo Instituto de 
Psicologia da USP, aponta para a relação entre a prática policial e 
implicações na saúde mental dos agentes. Para Joana Helena, o mesmo 
policial que vai às ruas com o intuito de combater a violência está 
vulnerável a ela e “não somente enquanto cidadão, mas também quando se 
coloca como combatente”.
Assim, o indivíduo submetido às práticas policiais passa a enxergar a
 sobrevivência de maneira física, comprometendo sua capacidade de 
reflexão, ou seja, “renuncia a tudo aquilo que não seja a destruição 
daqueles que querem destruí-lo”.
Corda bamba
Em uma padaria na região central de Joinville, Henrique*, um 
ex-policial militar de Santa Catarina e marido de Fernanda*, reflete 
sobre esse assunto: “O policial está sempre em uma corda bamba: se você 
vacilar, você morre. Se você exagerar, vai preso. Será que eu arrisco 
levar um tiro ou arrisco dar um tiro?”.
O relato do ex-PM catarinense corrobora a tese defendida por Joana 
Helena de que o policial em situação de risco pode recorrer 
involuntariamente à violência como mecanismo de defesa e, assim, 
utilizar as ferramentas à sua disposição para tal: a força física, a 
arma de fogo e o respaldo jurídico.
As promoções na carreira também ficam prejudicadas, de acordo com 
Paes de Souza. “A promoção de oficiais é por merecimento ou por tempo de
 polícia. E por merecimento você pode ser promovido mais rápido, porém, 
se você tem algum transtorno psicológico na sua ficha, é possível que 
você não seja escolhido para determinados postos para ‘não dar problema 
lá’”, explica.
Outro fator de risco para os policiais são os problemas familiares, 
que surgem como consequência do estresse da profissão e do baixo valor 
dos salários. Segundo a mesma pesquisa do Fórum de Segurança Pública, 
51% dos policiais militares já tiveram problemas para garantir o 
sustento de suas famílias. Para complicar, 39,4% dos PMs têm familiares 
que sofreram algum tipo de violência e/ou ameaça por serem parentes de 
um policial, e 31,8% sofreram algum tipo de violência e/ou ameaça como 
forma de retaliação pela atuação do parente.
Ter um comportamento violento dentro de casa em consequência da 
tensão profissional também é comum. “O cara vai descontar em casa; vai 
desenvolver alcoolismo, uso de drogas ilícitas, dependência de remédios,
 como antidepressivos, e tentativas de suicídio. Se alguém acha que é 
normal a cada 15 dias um policial militar cometer suicídio, esse alguém 
deve estar louco”, diz Paes de Souza.
Uma pesquisa realizada pelo mestre em psicologia e coordenador da Saúde da Polícia Militar de Santa Catarina, 
Gustavo Klauberg,
 organizou dados do afastamento de 5.777 policiais e bombeiros militares
 do estado entre 2013 e 2016. Dentre as conclusões de Klauberg, 
destaca-se a prevalência de 6,32% de servidores com TMCs.
A pesquisa de Klauberg utilizou o 
sistema de corte transversal
 para analisar os dados de afastamentos da PM-SC. Na prática, isso 
significa que as causas prováveis das doenças e seus efeitos foram 
observados no mesmo intervalo temporal. Isso se mostra importante na 
análise, pois, sendo os transtornos mentais doenças influenciadas pelo 
cotidiano do paciente, contextos sociais específicos podem criar um 
ambiente favorável para o aumento no número de casos.
O pesquisador conclui que “cuidar da saúde do policial militar 
estadual é, portanto, estratégico para o Estado de Santa Catarina, tanto
 do ponto de vista econômico, considerando o investimento de dinheiro 
público nas forças de segurança, quanto de eficiência profissional, já 
que a saúde exerce importante influência no desempenho e na qualidade do
 serviço prestado”. Ele ressalta que, entre 2014 e 2016, o governo do 
estado de Santa Catarina gastou mais de R$ 40 milhões com o pagamento de
 salários de PMs e bombeiros afastados. Em 2014, o governo desembolsou 
cerca de R$ 6,5 milhões; já em 2016, o valor superou os R$ 18 milhões.
Além disso, os dados mostram que 79% dos 5.777 afastados tinham 
funções operacionais, como o policiamento. Klauberg conclui ainda que a 
maioria esmagadora dos pacientes, 97,3%, está nos cargos mais baixos da 
hierarquia. Entre 2014 e 2016, o aumento de servidores afastados foi de 
238,4%.
São muitos os fatores que podem elevar o estresse dos agentes a 
níveis críticos. Entre os que aparecem com maior frequência em 
pesquisas, como a de Klauberg e de Dayse Miranda, estão históricos de 
abuso de álcool e outras substâncias, exposição a situações de estresse e
 violência, trabalhos em dois turnos e, também, maus-tratos por 
superiores na hierarquia militar.
Risco para si e para sociedade
De acordo com o Anuário do Fórum de Segurança Pública Brasileiro de 
2018, 5.144 pessoas morreram em decorrência de intervenções policiais no
 Brasil. Isso equivale a 14 mortos por dia.
Um policial militar com transtornos mentais não diagnosticados ou não
 tratados pode representar um risco para si e para a sociedade; a alta 
exposição a situações de risco de vida acarreta, explica Klauberg, em 
sua dissertação, no aumento dos níveis de cortisol do indivíduo.
O cortisol é um hormônio envolvido diretamente no controle do 
estresse. Quando em excesso, pode resultar em falta de atenção, lapsos 
de memória, dificuldade de concentração e, a longo prazo, distúrbios do 
sono e alimentares. Esses sintomas, somados ao porte de arma e à 
atividade estressante da função policial, podem acarretar, por exemplo, 
excessos durante abordagens cotidianas que, teoricamente, seriam 
simples.
Para o coronel Adilson Paes de Souza, é possível compreender o 
comportamento violento e excessivo de policiais em abordagens com base 
no estudo da psique pela ótica do psicanalista referência na área, 
Sigmund Freud. Paes de Souza ressalta: “Segundo Freud, em A psicologia 
das massas, a massa tem uma psique própria, que é muito mais do que a 
junção das psiques dos sujeitos que a compõem. É aí que mora o perigo. 
Eu posso estar conversando com vocês sobre violência, depois ir ao 
Morumbi assistir a um jogo e matar um cara junto com outros torcedores 
violentos; e aí você me pergunta: por quê, Adilson? E eu não tenho como 
explicar, eu fui assimilado pela massa e aconteceu. Da mesma forma que 
os policiais cristãos vão à igreja, são absolutamente religiosos, mas 
quando assumem o serviço saem na rua e matam um, dois”.
Ele explica que a formação do policial militar, assim como a dos 
militares das Forças Armadas, tem uma ideologia própria e é transmitida a
 todos os policiais. “Eu fui formado durante a ditadura. Fui formado 
para saber que ‘militar é superior ao tempo; militar não chora; militar 
não sente medo; paisano [civil] é bom, mas tem muito’. Hoje, depois de 
30 anos de PM e de estudos, eu percebo que estávamos sendo doutrinados”,
 relata. Para ele, essa ideologia transmite a sensação de heroísmo aos 
PMs. Em sua analogia, o coronel compara os policiais ao Super-Homem 
[Superman]. “’Eu sou o Super-Homem, tenho superpoderes, mas não sou bem 
resolvido’. Esse é o policial militar. O suicídio é uma das opções. O PM
 não aguenta. O falso eu do policial é ser um super-herói. Então, 
talvez, o PM cometa suicídio para eliminar esse falso eu e proteger o 
verdadeiro eu”, conclui.
800 mil suicídios por ano
Todos os anos, cerca de 800 mil pessoas cometem suicídio no mundo. Na
 prática, isso equivale a uma morte a cada 40 segundos. Os dados são da 
Organização Mundial da Saúde (OMS). Só no Brasil, mais de 11 mil pessoas
 se matam todos os anos.
O ato de atentar contra a própria vida não é uma novidade deste 
século, mas está crescendo em ritmo acelerado, junto com a ocorrência de
 transtornos mentais. O suicídio já foi considerado uma doença, uma 
espécie de “loucura momentânea”, mas essa ideia foi descartada e 
enterrada com a publicação de O suicídio, de Émile Durkheim no século 
17. De acordo com o sociólogo francês, são inúmeras as causas que podem 
levar uma pessoa a dar fim à própria vida. São tantas as possibilidades 
que não seria possível apontar causas, mas apenas disposições e fatores 
agravantes.
De acordo com o autor, ainda em 1897 já era possível dizer que o 
suicídio não é um evento individual nem uma loucura que toma conta do 
ser humano. Para Durkheim, o suicídio nasce da soma de tendências 
suicidas, transtornos mentais e contextos sociais. Porém, nenhum desses 
elementos seria a sua causa e, sim, pontos de pressão que podem ou não 
culminar num suicídio consumado.
Para Durkheim, o suicídio é um fato social e sua preponderância nas 
sociedades se dá pela coesão social, ou seja, quando a sociedade não é 
unida e vive entre tensões sociais, verifica-se maior ocorrência de 
suicídios.
Quando as instituições sociais não cumprem tão bem seu papel porque 
estão desmoronando, as normas de convívio social acabam enfraquecidas e a
 vida em sociedade pode se tornar angustiante e desmotivadora, de 
maneira que essas ocorrências se somam a questões individuais que 
terminam por levar o sujeito a cogitar o suicídio.
Durkheim sugere, logo de início, que o suicídio está ligado ao passar
 do tempo. Ele traz dados de países que, no século 17, já demonstravam 
maior ocorrência de mortes voluntárias autoinfligidas em pessoas com 
mais de 40 anos, aumentando com o envelhecimento.
“Não só o suicídio é muito raro na infância, mas é com a velhice que 
atinge o seu apogeu e, entre a infância e a velhice, aumenta 
regularmente com a idade […] Mesmo o recuo por volta dos 80 anos, além 
de ligeiro e nem um pouco geral, é relativo. Visto que os nonagenários 
se suicidam em igual ou maior proporção que os sexagenários, e sobretudo
 mais que os homens em plena força da vida. Por aqui não se vê que a 
causa responsável pela variação do suicídio não poderia consistir em uma
 impulsão congênita e imutável, mas na ação progressiva da vida 
social?”, escreveu.
É importante ressaltar que, no período em que Durkheim chegou a tais 
conclusões, o mundo tinha outros contextos sociais que permeavam o 
suicídio como fato social. Agora, nos primeiros 19 anos do século 21, 
tem-se noticiado um aumento expressivo e alarmante de suicídio na 
infância. De acordo com o Mapa da Violência Letal contra Crianças e 
Adolescentes do Brasil, entre 2003 e 2013 houve um aumento de 10% nos 
casos de suicídio entre crianças e adolescentes dos 9 aos 19 anos no 
país. Um dos fatores que pode estar ligado a esse aumento, por exemplo, é
 a dificuldade que pais e professores têm de notar sinais que indicariam
 a possibilidade de ocorrência de transtornos mentais.
De qualquer forma, o suicídio ainda impera entre os mais velhos. E as
 suposições de Durkheim encontram eco nas mortes de policiais militares 
em todo o Brasil, não somente quando relacionadas a faixa etária, mas 
também quando somadas ao contexto social e profissional em que vivem as 
vítimas.
*Os nomes foram modificados para preservar a identidade da fonte.
Essa reportagem é resultado da Microbolsa de Violência Policial, realizado pela Agência Pública e a Conectas Direitos Humanos.
*Este conteúdo foi publicado originalmente no site da Agência Pública.
Fonte:
https://exame.abril.com.br/brasil/pms-sofrem-com-suicidios-e-transtornos-mentais-sem-apoio-da-corporacao/