Por D. Estêvão Bettencourt, OSB



 







Aconteceu que, indo eles pelo caminho, veio um
homem que lhe disse: Seguir-te-ei para onde quer que vás. Jesus
disse-lhe: As raposas têm seus covis e as aves do céu têm seus ninhos,
mas o Filho do homem não tem onde reclinar a cabeça.A outro disse:
Segue-me. Mas ele disse: Senhor, permite-me que vá primeiro sepultar meu
pai. Mas Jesus respondeu: Segue-me, e deixa que os mortos enterrem os
seus mortos; tu vai e anuncia o reino de Deus (Lc 9, 57-60; cfr. Mt 8,
19-22). 






ATITUDE PERANTE A VOCAÇÃO





O
significado dos dizeres acima reproduzidos entende-se bem à luz do
respectivo contexto, contexto que no Evangelho de São Lucas é um pouco
mais explícito do que no de São Mateus.


Na verdade, os
Evangelistas nos apresentam sucessivamente duas atitudes dos homens
perante uma chamada do Divino Mestre – a chamada para seguirem a Cristo
na qualidade de discípulos.


A primeira atitude é a da generosidade aparente, mas superficial. Com efeito, alguém se apresentou ao Divino Mestre afirmando: Mestre, seguir-te-ei para onde quer que vás. A
esse fervor pouco experimentado, dizem os Evangelistas, Jesus houve por
bem responder com reservas, mostrando as dificuldades do propósito:
segui-lo seria expor-se a todas as espécies de privações, pois as raposas têm os seus covis, e as aves do céu os seus ninhos, mas o Filho do homem não tem onde reclinar a cabeça, advertiu o Senhor.


A segunda atitude do homem perante a chamada de Cristo é a da vacilação. Certa vez, o próprio Divino Mestre dirigiu a alguém o convite: Segue-me. Ao que o discípulo replicou: Senhor, permite-me que vá primeiro sepultar meu pai. Não se dando por satisfeito com a resposta, Cristo insistiu: Segue-me, e deixa que os mortos enterrem os seus mortos.


Alguns comentadores julgam que o pai do jovem se achava ainda em vida,
se bem que gravemente enfermo. O mancebo teria então pedido ao Senhor o
prazo mais ou menos longo que decorreria até a morte e o sepultamento do
doente, talvez pensando em esquivar-se definitivamente ao convite de
Jesus. A maioria dos exegetas, porém, admite que o ancião já morrera e
que o jovem pedia apenas o exíguo tempo necessário para participar dos
funerais.


Como quer que seja, num e noutro caso o pedido parecia
muito legítimo: prestar assistência aos genitores e sepultar os mortos
eram obras altamente estimadas pelos judeus piedosos. E já que os judeus
costumavam sepultar no próprio dia da morte (cfr. At 5, 5-6), o pedido
do jovem não implicaria em grande atraso para seguir o Divino Mestre.
Contudo, Jesus não quis reconhecer a legitimidade da súplica.




() Em particular, o sepultamento dos defuntos era tido como dever tão
imperioso que os rabinos dispensavam das orações usuais e do estudo da
Lei os filhos que tivessem por sepultar pai ou mãe (cfr. o tratado do
Talmud, Berachot 17, 2); além disso, a própria Escritura
Sagrada, por suas narrativas, muito parecia recomendar aos filhos o
cuidado de sepultarem os seus pais (cfr. Gên 25, 9; 50, 5; Tob 1, 21; 2,
3-7; 4, 3).


-


Não porque o cuidado dos mortos não seja em
si uma obra boa, mas porque, no caso focalizado, a atitude do mancebo
significava falta de generosidade para com Deus, significava certa
covardia ou também um coração dividido entre o amor a Deus e o amor às
criaturas. Ora, o Senhor quer ser amado acima de tudo; é, aliás, a reta
hierarquia de valores que o exige: ou Deus ocupa o lugar capital na vida
do homem, norteando todas as suas atitudes, ou simplesmente dever-se-á
dizer que Deus não existe para esse homem; ninguém se iludirá julgando
que cultua a Deus pelo fato de Lhe consagrar algumas de suas atitudes ou
algumas de suas horas na vida.


O VALOR ABSOLUTO


Uma pequena digressão servirá para ilustrar quanto acabamos de dizer.


Um monge hindu dizia com muito acerto: “Deus é a unidade sem a qual só
existem zeros”. Com efeito, Deus é, por definição, o Ser Absoluto – o
que significa: o Valor Absoluto. Deus é, sim, o Valor que torna valiosa
toda e qualquer criatura, e sem o qual esta é vazia e enganadora.
Imaginemos uma série de três zeros, outra de seis, outra de nove zeros:


000 000.000 000.000.000


Os zeros que se acrescentam aos zeros nada alteram; tudo fica sendo
zero... Mas coloquemos o número Um, uma só unidade, coisa simplicíssima,
na série... Se pusermos o “Um” em último lugar, o conjunto, por mais
longo que seja, ficará valendo muito pouco, será uma ninharia... Se o
colocarmos em penúltimo lugar, já o conjunto valerá dez, o que ainda é
muito pouco... Caso ponhamos a unidade em terceiro, em quarto, em quinto
lugar, a série irá aumentando de valor (cem, mil, dez mil...).
Finalmente, se se coloca o número Um à frente de cada série, ter-se-á:


1.000 mil


1.000.000 um milhão


1.000.000.000 um bilhão


Coisa estupenda! Os zeros tomam imenso valor desde que o “Um” lhes seja
anteposto e os ilumine. Pois bem; Deus é esse “Um” sem o qual as
criaturas nada são.


Se Deus ficar em último lugar na vida do
homem, esta se apresentará sempre como insípida bagatela, ninharia
vazia... Uma vez, porém, que se ponha Deus incondicionalmente em lugar
capital, cada bagatela, cada zero da vida toma valor imprevistamente
grande.


O homem pode acumular mil bens criados no seu tesouro; se
chegarem a fazer empalidecer ou a remover a face de Deus no horizonte
do indivíduo, esses bens, por mais numerosos que sejam, equivalerão a
uma longa série de zeros; deixarão o seu possuidor sempre frustrado e
insatisfeito...


Mas se o cristão puser Deus à frente de cada
criatura e procurar ver tudo sob a perspectiva dEle, então e somente
então esse homem começará a compreender o valor das criaturas; começará a
compreender também que seguir Cristo é o maior de todos os bens e que a
vida, vivida em fidelidade absoluta ao Senhor, vale, apesar de tudo, a
pena de ser vivida!


A ÚNICA RESPOSTA


Voltando ao texto do
Santo Evangelho, diremos conseqüentemente que, no caso da chamada
dirigida pessoalmente por Jesus ao jovem, só uma resposta era adequada: a
aceitação imediata, não postergada por qualquer outra tarefa; embora
esta fosse em si legítima – como o sepultamento dos mortos –, naquelas
circunstâncias tornava-se condenável porque, em vez de levar o discípulo
a amar mais a Deus, servia para diminuir e entibiar a sua adesão ao Bem
Infinito.


Eis o motivo da insistência apresentada por Cristo.
Contudo, a segunda parte da frase do Senhor costuma também causar
estranheza: Deixa que os mortos enterrem os seus mortos.


A construção da frase é evidentemente artificiosa, pois, como de
antemão se pode conjeturar, faz duplo emprego do termo “mortos”. Em
suma. Jesus quer dizer que, para sepultar cadáveres materiais – ou os
mortos, no sentido físico –, há sempre gente suficiente; há, sim, todos
aqueles que não são chamados à vida da graça e do apostolado, gente
talvez indiferente aos interesses do Reino de Deus. Tais pessoas vivem
para o mundo e para as tarefas deste mundo; são por Jesus designadas
metaforicamente como “mortos”...


Esta figura de linguagem, forte
como é, justifica-se pelo desejo que Jesus tem de realçar a grandeza e a
premência da vocação dirigida ao jovem mancebo; chamado a seguir
diretamente a Jesus, ele possui o quinhão por excelência, em comparação
com o qual tudo empalidece ou desaparece, morre.


A figura também
se explica pelo uso dos rabinos, que costumavam considerar como mortos –
em espírito – os indivíduos que viviam alheios ao Reino de Deus. Aliás,
um eco bem significativo desse uso ressoa no texto de São Paulo: A viúva que vive em prazeres está morta, embora pareça viva (1 Tim 5, 6).


Conseqüentemente, os mestres de Israel tinham os homens piedosos na
conta de “vivos”, mesmo que estes se vissem atribulados e condenados à
morte (cfr. 2 Cor 4, 7-12).


Por conseguinte, Jesus quer incutir
ao discípulo que Ele chama a preciosa norma: “Deixa o cuidado dos mortos
ou, mais amplamente ainda, o cuidado das coisas mortais ou temporais,
aos homens que, por desconhecerem valores mais elevados, se dedicam
profissionalmente a isso; tu, porém, que recebeste a melhor das
vocações, não queiras viver como se não a tivesses, mas volta-se
decididamente para os valores eternos”.


Durand comenta assim as
palavras de Jesus: “Admiramos o soldado que, no caso de extremo perigo
da pátria, permanece em seu posto na frente de combate, deixando aos de
trás o cuidado de sepultar o seu pai. Como então nos contentaríamos com
uma dedicação menor, ao tratar-se do Reino de Deus?” (Com. em Mateus, 133).


Por fim, o episódio que acabamos de analisar ainda sugere uma reflexão:
em dados momentos da vida, a maior graça que Deus pode conceder a uma
alma é a de pedir-lhe um ato de heroísmo. Esse ato, esse impulso forte,
ainda que faça sofrer, vem a ser a condição imprescindível para que o
cristão se eleve acima de seus interesses temporais ou para que
fortaleça a sua verdadeira vida, e não se torne um morto a sepultar
mortos no cemitério das coisas temporais.





Fonte: http://www.quadrante.com.br/artigos_detalhes.asp?id=247&cat=6


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