LUIS HENRIQUE AMARAL

 
ENVIADO ESPECIAL A CURITIBA (PR)

 

Padres no divã - ISTOÉ Independente

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Uma senhora de 62 anos entra na farmácia e compra um frasco de álcool. Vai para a casa, fecha-se no quarto e o bebe. Até perder os sentidos. A cena seria quase banal no Brasil, onde 10% da população é alcoólatra, se não fosse um fato: a senhora é a irmã Maria, uma freira, uma religiosa católica.
A história de Maria é real. O alcoolismo entre padres e freiras também é real. Para combatê-lo, foi criada em 1981, em Curitiba (PR), a Comunidade Vida Nova, a única instituição na América Latina especializada em tratar religiosos viciados em álcool.
Desde a sua fundação, há 16 anos, a Vida Nova já atendeu 150 padres, 30 freiras, 25 seminaristas e 100 leigos. A maior parte dos leigos é de paroquianos ou parentes de religiosos. Os demais são indigentes atendidos de graça.
Na última segunda-feira, pela primeira vez, uma equipe de reportagem foi autorizada a passar um dia acompanhando os trabalhos da comunidade. A pedido dos internos, os nomes usados na reportagem são fictícios. "Temos medo do sensacionalismo", explicou o padre Guilherme Tracy, 68, fundador e diretor responsável.
Os padres e freiras, geralmente, são enviados à casa por seus bispos ou superioras. "Alguns chegam alcoolizados, outros não", diz o padre Guilherme. "Passam quatro dias no quarto tomando remédios contra convulsão e se desintoxicando. Depois de superada a crise de abstinência, eles se juntam ao resto do grupo", completa.
Os que se internam em depressão recebem atendimento psiquiátrico mais intenso. "Alguns chegam falando em suicídio, precisam de mais ajuda", diz o padre.
Os motivos que levam os religiosos à bebida não são muito diferentes dos que atingem os leigos: solidão, estresse e medo, entre outros. Mas eles têm dificuldade maior para assumir o problema.
"Na minha terra, as pessoas falam que o alcoólatra é mau caráter e bebedeira se cura com cadeia ou chá de vergonha", diz o padre Alberto, 34, do Ceará. "Imagine como foi para eu assumir a doença."
Rotina
A rotina da casa começa cedo. Às 7h, os cerca de 25 internos saem para uma caminhada de 3 km em torno de um lago próximo à casa.
Às 8h15, é servido o café e, depois, todos ajudam na faxina. Ainda de manhã, rezam por 15 minutos, fazem terapia em grupo, orientados por médicos, e lêem livros sobre alcoolismo produzidos pelo AA (Alcoólicos Anônimos).
Após o almoço, às 14h, novo grupo de terapia. O jantar é servido às 18h30. Depois da sobremesa e de lavar os pratos, os internos se dividem em grupos e vão andando para reuniões em alguns dos 40 núcleos de AA que existem em Curitiba. Na volta, conversam, assistem televisão ou fitas de vídeo e vão dormir.
Nos finais de semana, os padres vão celebrar missas e ouvir confissões em paróquias da cidade. Ajuda a não se sentirem inúteis.
O período de internação é de quatro meses. "Depois, a pessoa pode voltar para sua cidade, mas terá que continuar a participar das reuniões do AA", diz o padre.
A base do tratamento é o método do AA. O viciado, primeiro, tem de se conscientizar de que é doente. Depois, assume o compromisso de não beber nas 24 horas seguintes. A promessa deve ser repetida, diariamente, por toda a vida.
"Eu sou um alcoólatra em recuperação. O máximo que posso prometer é que não vou beber hoje", diz um padre gaúcho de 36 anos, internado na Vida Nova.
O padre Guilherme criou a Comunidade Vida Nova inspirado na Guest House, fundada em Detroit (EUA) há 41 anos e que já recuperou 4.000 religiosos.
"O fundador da casa percebeu que alguns padres começavam a frequentar as reuniões do AA e acabavam deixando o grupo por não se adaptarem. Então, criou uma casa especializada", diz.
A primeira sede da Vida Nova foi o seminário dos Redentoristas em Curitiba. Em 89, o padre Guilherme recebeu uma herança e comprou a casa que abriga a entidade.
A Vida Nova é sustentada pelas diárias de R$ 25, cobradas dos internos que podem pagar. Geralmente, os bispos assumem a conta dos padres. Ela ainda recebe pequenas doações do exterior.
Além de alcoolismo, a casa recebe religiosos viciados em outras drogas. "Tivemos dois padres usuários de cocaína, mas eles não se recuperaram", diz o padre Guilherme. "A última notícia que tive é que estavam encostados." Algumas freiras viciadas em tranquilizantes também se internaram.
Em 96, o padre recebeu uma herança pela morte de uma irmã. Comprou um terreno atrás da sede e lançou uma campanha para arrecadar verbas para construir outra casa e ampliar o atendimento.


Comunidade Vida Nova - Caixa Postal 18.505 - CEP 80810-990, Curitiba, PR. 

 

Fonte: https://www1.folha.uol.com.br/fsp/1997/11/23/brasil/17.html

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