Quem são as pessoas que abrem mão da tecnologia e passam a viver isoladas por causa de uma doença polêmica até na existência













RIO — Um dor de cabeça estranha fez com que Marcelo* pedisse demissão. Uma náusea que surgia sempre que estava em frente à TV o fez desistir de jogar videogame. Aos poucos, as dores se espalharam por todo o corpo, as noites insones foram minando sua saúde e a prostração tomou conta da sua rotina. Achava que fosse morrer. Assim como milhares de pessoas espalhadas pelo mundo, ele acredita sofrer de hipersensibilidade eletromagnética (ou EHS, na sigla em inglês), uma doença não reconhecida pela Organização Mundial da Saúde (OMS) que divide a comunidade científica. O problema seria causado pelas ondas emitidas por aparelhos como telefones celulares, roteadores wifi e fornos de micro-ondas, mas pesquisadores argumentam que nada comprova sua relação com tais sintomas. Desmentidas por médicos e vítimas do preconceito, pessoas como Marcelo acabam isoladas na tentativa de se livrar de uma doença-fantasma.


O primeiro país a se posicionar sobre o problema foi a Suécia, que em 1995 reconheceu a EHS como um comprometimento funcional — condição mais leve que a deficiência, significa que parte do corpo daquela pessoa não está exercendo suas funções corretamente. Na Espanha, a funcionária pública Minerva Palomar recorreu à Justiça e conseguiu, em 2011, ter sua aposentadoria por invalidez aprovada. No Canadá, nos Estados Unidos e na Europa há centros especializados em diagnosticar o problema. No entanto, nenhum país reconhece a condição como uma doença, e tanto no Brasil como em outros países da América do Sul a questão ainda é praticamente desconhecida.


Marcelo procurou um neurologista, um psiquiatra e um psicólogo, sem sucesso. Ele descobriu a EHS a partir de um programa de televisão, e suspeitou que uma rede de alta tensão em frente ao seu apartamento poderia ser responsável pelo eterno mal-estar. Pesquisou mais na internet, e se autodiagnosticou eletrossensível. Decidiu se mudar para uma casa no interior do estado, passou a evitar lugares com wi-fi, usa telefone celular apenas para emergências e chegou a cobrir as paredes do quarto com plástico metalizado, uma das técnicas difundidas na internet que diminuiriam a radiação. As mudanças lhe custaram o casamento.


— Todo mundo que tem essa porcaria acaba perdendo a família. Essa doença virou meu mundo de ponta cabeça. Falta informação, e quem tem a doença acaba marginalizado pela sociedade. Minha família inteira acha que fiquei louco — desabafa o comerciante, que pediu para não ter a sua identidade revelada.


Depois de 22 anos lutando contra enxaquecas, insônia, alterações de humor e dores no corpo que culminaram em uma crise que a fez ser hospitalizada no meio da madrugada, a canadense Lucy Stanford, de 61 anos, chegou à solução para o seu problema. Seu médico havia descoberto a EHS em um congresso nos Estados Unidos, e identificou na então corretora de imóveis a maioria dos sintomas descritos.


— Ele me disse que a única forma de ter certeza seria que eu me retirasse de lugares onde havia campos eletromagnéticos e ver se me sentia melhor. Fui para a fazenda de uma amiga e cinco dias depois quase todos os sintomas haviam desaparecido. Foi a primeira vez em que me senti quase normal desde 1987. E isso foi em 2009, ou seja, 22 anos mais tarde — lembra.


Lucy então marcou uma consulta no Women’s College Hospital, hospital universitário de Toronto pioneiro na detecção da eletrossensibilidade — o Canadá não reconhece a EHS como doença, mas o hospital atesta que essas pessoas sofrem de intolerância ao ambiente em que vivem. A consulta demorou um ano para ser realizada, tamanha a lista de espera da instituição para pessoas que alegam sofrer do problema. Quando recebeu o atestado, ela já havia vendido casa e escritório em Toronto e se mudado para a cidadezinha de Crystal Beach, na costa dos Grandes Lagos. Em sua nova casa, fios de telefone e eletricidade passam por baixo da terra e filtros impedem que quantidades mínimas de eletricidade cheguem aos cômodos pelas tomadas. Celulares, telefones sem fio, roteadores wi-fi e lâmpadas frias também não existem em sua vida.


O relatório Bioinitiative 2012, assinado por 29 pesquisadores de todo o mundo, alerta que a exposição a campos eletromagnéticos pode levar a reações inflamatórias e alterações no sistema imunológico. O documento afirma que não há provas substanciais, mas cita estudos que indicam que a EHS pode ser um problema neurológico. Segundo o estudo, estima-se que entre 3% e 5% da população mundial sofram do problema.



A Organização Mundial de Saúde (OMS), no entanto, não admite que os sintomas relatados por eletrossensíveis sejam realmente causados pelos aparelhos da vida moderna. A entidade reconhece que eles são reais e podem variar de severidade, mas argumenta que “não há base científica que relacione os sintomas de EHS à exposição a campos eletromagnéticos”. O órgão acrescenta que “a EHS não se trata de um diagnóstico médico, e não está claro que represente um único problema médico”. Um documento da Contribuição Europeia para a Ciência e Tecnologia (COST), instituição que reúne cientistas europeus, corrobora com as afirmações da OMS. A investigação, intitulada Cost Action BM0704 sugere que a EHS seja um efeito nocebo, expressão que é contrária ao efeito placebo e se refere a reações sentidas quando uma pessoa acredita ter tomado uma droga (ou no caso, ter sido exposta à radiação), que na realidade não tem potencial nocivo.


A bióloga e jornalista especializada em meio ambiente Kim Goldberg, que está escrevendo um livro sobre a eletrossensibilidade, discorda:


— Ouvi muitas histórias de pessoas com EHS que não sabiam que estavam expostas à rediação sem fio, como torres de celular ou redes wi-fi. Em todos os casos, elas sabem imediatamente que estão expostas e começam a se sentir mal. Essa prova é avassaladora. Caso a EHS fosse uma condição psicológica ou psiquiátrica, essas pessoas não se sentiriam mal quando estão em um carro e se aproximam de uma torre de celular que ainda não viram, por exemplo — argumenta Kim, que reúne em seu blog Refugium as histórias de Lucy e outras dezenas de vítimas daquilo que decidiu chamar de “eletropraga”.


Autora do livro “Vivendo esse mundo digital” e professora associada de Pediatria e Clínica de Adolescentes da Universidade Estadual do Rio de Janeiro (Uerj), Evelyn Eisenstein pondera que a ciência é muito cuidadosa com esse tipo de diagnóstico, mas alerta: onde há fumaça, há fogo.


— Há cerca de 10 anos começaram os estudos sobre efeitos dos campos eletromagnéticos na saúde. Para fazer uma relação de causa e consequência é preciso afastar todas as variáveis. São necessários estudos extremamente complexos, e esse é o grande complicador. Por isso a OMS é muito cuidadosa quando diz que existe a preocupação, que estão notando problemas, mas você não pode incriminar sem provas. No entanto, se a OMS já está colocando alguma coisa em pauta, desculpe a expressão, mas onde há fumaça, há fogo.


Um dos poucos pesquisadores dos impactos dos campos eletromagnéticos do Brasil, o professor de engenharia elétrica da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS) Álvaro Salles acredita que já há evidências o bastante para exigir uma legislação mais rigorosa quanto à exposição a essas ondas. Salles coordenou um grupo de estudos que reuniu cientistas de todo o mundo em Porto Alegre para debater o tema. Para ele, os hipersensíveis são apenas uma pequena parcela da população que já sofre de males que poderão atingir a todos no futuro.


— A Agência Internacional de Pesquisa de Câncer (IARC na sigla em inglês) classificou essas radiações no grupo 2B, que significa possivelmente cancerígeno, mesmo grupo de chumbo, lítio, cobalto, DDT, e acrescentou que enquanto não houver mais resultados, a recomendação é que se restrinja ao máximo a exposição das pessoas a essas radiações. É impressionante como essa classificação não causou nenhum impacto nos governos, sob a ótica de prevenir na saúde pública.


Enquanto pesquisadores e órgãos de saúde não chegam a um consenso quanto à existência da EHS, pessoas como Lucy e Marcelo criam grupos de apoio e troca informações. Nos Estados Unidos, o vilarejo de Green Bank, na Virgínia Ocidental, tornou-se um refúgio para eletrossensíveis. Lá está o Observatório Nacional de Rádio Astronomia, que abriga o maior telescópio móvel do mundo. Como o aparelho pode sofrer interferências de ondas de rádio, televisão, telefonia móvel e internet sem fio, foi preciso criar ao seu entorno uma zona neutra de 33 mil quilômetros quadrados, chamada Zona Nacional de Silêncio de Rádio (NRQZ na silga em inglês). A ausência de dispositivos eletrônicos fez com que o local atraísse eletrossensíveis de todo o país, que vão ali passar por uma espécie de desintoxicação, ou que se transferem definitivamente — estima-se que 36 pessoas já tenham se transferido para lá por esse motivo.


Em dezembro do ano passado, foi inaugurado em Zurique, na Suíça, o primeiro condomínio para portadores de EHS e Sensibilidade Química Múltipla (MCS, na sigla em inglês), outro problema não reconhecido por autoridades médicas que estaria ligado a produtos químicos, como materiais de limpeza, derivados do petróleo e até perfumes. O terreno foi doado pelo governo municipal à Healthy Life and Living Foundation, organização que representa os portadores desses problemas no país. No prédio de 15 apartamentos, estão proibidos quaisquer aparelhos que emitam ondas eletromagnéticas, além de materiais de limpeza e higiene que não estejam entre os considerados seguros para os portadores de MCS.



Para a designer brasileira Lívia Marques, que vive na Espanha há 12 anos e conseguiu, este ano, ter o seu problema reconhecido por um médico, o principal desafio dos eletrossensíveis é divulgar o problema. Ela suspeitou ser portadora de EHS há dois anos, e levou todo o material que encontrou até o médico que a atendia no serviço público espanhol. O processo de convencimento levou algum tempo, mas foi o suficiente para que ela se sentisse realizada.


— A primeira reação dos médicos é de incredulidade, existe uma defasagem entre as novas questões de saúde e o conhecimento médico. Dizer que sentia dor quando chegava perto da TV, de celulares ou de roteadores wi-fi era meio “kafkiano” — lembra. — Espero que em pouco tempo possamos ter nossos direitos reconhecidos tanto na Espanha como em todo o mundo. É extremamente delicado não poder trabalhar ou se locomover normalmente nos espaços públicos e não ser compreendido pela maioria das pessoas.


* Os nomes foram trocados a pedido dos entrevistados


Fonte:

Leia mais sobre esse assunto em http://oglobo.globo.com/sociedade/saude/hipersensibilidade-eletromagnetica-alergia-invisivel-12405734#ixzz4blVg1gJs 
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